Paul Sheehan, The Sydney Morning Herald, 1.7.2009
tradução de Edu Montesanti
Malalaï Joya deve ter sabido que estava prestes a assinar sua própria sentença de morte, quando pegou o microfone em 17 de dezembro de 2003
Malalaï Joya deve ter sabido que estava prestes a assinar sua própria sentença de morte, quando pegou o microfone em 17 de dezembro de 2003. Ela tem só 1,5 m de altura, e mesmo assim maquina um golpe verbal fatal. Mas esse é o Afeganistão, onde 80% das mulheres são analfabetas, e a maioria dos homens parecem dispostos a mantê-lo desse jeito. Muito veemente, uma mulher provocativa como se tivesse uma doença mortal.
Antes que pudesse falar, um funcionário público havia abaixado o microfone. Seu hijab preto começou a se agitar. Ela estava inquieta, arrumando seu véu; seu coração estava batendo mais rápido. Então, ela colocou em prática algo que, mais de cinco anos depois, ainda faria dela uma nômade secreta dentro de sua própria terra.
“Quando eu saio de casa, faço isso discretamente na companhia de uma mulher, usando essa desagradável burca”, disse-me ela semana passada. “Quando ninguém sobre meu paradeiro, não há necessidade de seguranças pessoais. Mas eu tenho que usar diferentes táticas para esconder minha identidade quando transito com meus seguranças”.
Ela deve pagar por sua própria segurança, porque dois anos atrás, tendo sobrevivido a várias tentativas de assassinato, e eleita ao parlamento, ela foi expulsa dele por desprestigiá-lo. Ela havia comparado-o a um zoológico. Deste modo, sua segurança é financiada por seus discursos no exterior, tal como o tour da autora que ela dará início na próxima semana na Austrália.
“Minha segurança ainda é muito cara”, ela disse. “O veículo que uso é muito velho e não é adequado, mas não posso comprar um novo. O salário que ofereço a meus seguranças é muito pequeno, mas eles ainda estão satisfeitos e não ficam comigo por dinheiro mas para minha proteção… Às vezes, fico em casas seguras de gente que me ajuda ou casas de parentes por semanas, mas às vezes tenho que trocar de casa muitas vezes em uma semana.
No dia fatídico em dezembro de 2003, ela falou diante de 501 companheiros delegados, além de diplomatas, funcionários públicos e redes de notícias, dentro de um local gigante. Eles haviam se reunido para um encontro nacional dos líderes tribais, comunitários e religiosos, organizados pelas Nações Unidas para aprovar uma nova constituição. Ela acreditava que a assembléia comportava numerosos “teocratas e senhores da guerra”, sem nenhum interesse em democracia.
“Alguém tinha que entrar naquela assembléia corrupta e condená-la perante o mundo”, disse ela aos seus apoiadores. Assim, em 2003 ela concorreu à eleição para a assembléia e tornou-se uma das 114 delegadas eleitas pelo eleitorado exclusivamente feminino. Sua mãe chorou quando ficou sabendo que sua filha mais velha havia sido eleita. E não foram lágrimas de alegria.
Ela tinha apenas 25 anos e parecia até mais jovem. Ela nasceu no oeste do Afeganistão, no Dia de Anzac, em 1978. Seu pai perdeu uma perna lutando com os mujahedeen contra o Exército soviético. Ela foi criada em um campo de refugiados no Irã e no Paquistão. Ela é a segunda de 10 filhos, a mais velha dentre as 7 filhas.
Durante os anos do Taliban – quando a educação para mulheres foi banida – ela organizou uma escola secreta para meninas, escondendo livros sob sua odiada burca. Após o Taliban ser derrubado do poder em 2001, ela tornou-se uma heroína local em sua cidade natal de Farah, por montar um centro de saúde e um orfanato, onde ela viveu em uma cabana de um lugar. Ela foi também defensora apaixonada dos direitos das mulheres, e assim os discursos políticos vieram naturalmente.
Em dezembro de 2003 em Kabul, por ocasião da assembléia nacional para decidir pelo futuro da democracia no Afeganistão, ela insistiu junto ao presidente da casa para que a deixasse falar. Finalmente, ele cedeu dizendo à assembléia: “As crianças insistem que não têm tido tempo suficiente de falar”.
“Os milhões de dólares que a Austrália tem doado estão simplesmente enriquecendo o bolso da maioria dos traidores criminosos e assassinos, que são irmãos-na-fé dos talibans”, disse-me ela.
Apenas alguns segundos, e o sossego de sua viva desapareceu. “Minha crítica e de o=todos os meus compatriotas aqui”, Joya iniciou sem rodeios, “é por que vocês estão permitindo a legitimação desta Loya Jirga [assembléia tradicional] a ser executada com a presença dos criminosos que têm levado nosso país a esse estado? Por que vocês permitiriam a presença desses criminosos aqui? Eles são os responsáveis pela nossa atual situação”.
Os bandidos gritaram. Muitos lá dentro explodiram em aplausos. Muitos pareciam raio. O distúrbio ainda significava uma vantagem para ela. “Eles deveriam ser processados em tribunais nacionais e internacionais”. Ela estava agora falando em voz alta em cima de um grande barulho. De repente, ela não podia mas ouvir a própria voz. Seu microfone havia sido cortado. Seu discurso havia durado 90 segundos e a homens enraivecidos lançavam-se contra o pódio.
“Abaixo o comunismo!”, gritaram os proeminentes fundamentalistas islamitas na fileira da frente. Uma delegada gritou: “Tirem a calça dessa prostituta e amarre-a na cabeça dela!”. Joya foi retirada da assembléia para sua própria proteção. Naquela noite, o grupo de homens foi ao campus da universidade onde as delegadas estavam reunidas, gritando insultos e procurando nas salas. “Onde está aquela garota prostituta? Quando a encontramos, estupraremos e mataremos!”.
Perguntei à Joya se ela acreditava que a contínua ofensa de “prostituta” e “vagabunda” representava repressão sexual disfarçada de zelo religioso. “Concordo totalmente. Esses fundamentalistas usam a religião como instrumento para reprimir as mulheres. Eles consideram-nas cidadãs de segundo grau. Eles são fortemente misóginos”.
Sua irrupção dominou os noticiários daquele dia. A história correu o mundo. A ONU interveio, providenciando segurança armada e casa segura.
Mas quando ela voltou a Farah, uma surpresa aguardava: uma grande multidão. Ela era uma heroína em sua província. A alegria não durou muito. Em 28 de abril de 2004, quatro meses após ela ter falado na Loya Jirga, uma bomba à margem da estrada explodiu logo adiante de sua escolta de segurança. O responsável pelo artifício havia entrado em pânico e detonado-o muito cedo. Dois meses depois, um grupo de homens armados bombardearam o orfanato dela, mas Joya estava longe.
Ela recusou-se ficar quieta. Após as eleições nacionais de 18 de setembro de 2005, ela decidiu concorrer ao parlamento. Antes disso, ela se casou. O nome de seu esposo é mantido em segredo, por razões óbvias, e eles gastam muito tempo distantes um do outro. No dia do noivado, um perímetro defensivo foi montado em volta da tenda. Cada convidado era revistado por precaução a bombas e armas.
Ela concorreu ao parlamento como candidata independente. Alguns de seus oponentes descreveram-na como “prostituta”, “antiislamita” e “comunista”. Como ocorreu em seu pleito para a assembléia em 2003, venceu facilmente, já que as mulheres acorreram a ela. Aos 27 anos, tornou-se o mais jovem membro do parlamento afegão. Naquela ocasião, ela teria uma voz que não poderia ser calada. Foi o que ela pensou. “Exatamente na primeira vez que eu falei no parlamento, meu microfone foi cortado, uma prática que eu me acostumaria”, ela escreveu em seu nova auto-biografia, “Raising My Voice”. “Meus dias no parlamento foram sempre estressantes e solitários porque eu era constantemente atacada e insultada”.
Em maio de 2006, após ela ter feito um novo e abreviado pronunciamento sobre estupro, o parlamento novamente se converteu em um rebuliço. “Eu tinha que me abaixar atrás da minha escrivaninha enquanto eles jogavam garrafas de água em mim e chinelos voavam sobre minha cabeça”.
Um ano mais tarde, após recusar pedir desculpas por comparar o parlamento afegão a um zoológico, ela foi suspensa pelo resto do seu período de cinco anos no ofício, pelo voto da maioria dos parlamentares. Nenhuma ação foi tomada ainda contra os membros do mesmo corpo que a tinha chamado de vagabunda e ameaçado Joya de morte.
De tudo isso, Joya tem uma mensagem à Austrália: vocês estão jogando fora seu sangue e seu dinheiro no Afeganistão. Os senhores da guerra têm-se fortificado. Os danos à população civil estão causando ressentimento. O país está voltando a ser um estado de narcóticos. A corrupção é endêmica. O Parlamento está corrompido. As condições das mulheres contiunam péssimas.
“Os milhões de dólares que a Austrália tem doado, simplesmente vão para o bolso dos principais traidores criminosos e assassinos, que são irmãos-na-fé dos talibans”, ela me disse. “Porque a Austrália é parte da coalizão da OTAN, ela tem seguido as políticas erradas há sete anos. Mesmo as tropas que têm perdido suas vidas são as vítimas das políticas erradas.
“Seu governo está apoiando um Estado corrupto, dominado pela máfia. Os senhores da guerra são os inimigos declarados da democracia, dos direitos das mulheres e da justiça. As tropas australianas estão na verdade defendendo as estratégias e os interesses militares dos EUA, não do povo afegão”. Julgando-se de acordo com o progresso da Guerra no Afeganistão, fica-se com a certeza impotente de que Joya está certa quando proclama: “Mulheres afegãs como eu, votando e concorrendo por um cargo, são a prova de que os Estados Unidos trouxeram democracia e direitos das mulheres ao Afeganistão. Mas tudo isso é mentira, tapando o Sol com a peneira para o mundo”.