Raphaëlle Bacqué e Annick Cojean, Le Monde, 25.7.2008
tradução de Edu Montesanti
Deputada eleita ao Parlamento de Cabul, está afastada do ofício por meios vergonhosos, ela não dorme nunca duas noites seguidas sob o mesmo teto, ameaçada pelos que denunciou por crimes, tráfico, cumplicidade, corrupção
“Eu tenho um sonho”
Ela tem 30 anos. Está cercada. Não suporta indiferença nem negligência. Não há tempo para se esperar. Falta justiça. Pior ainda. Faz tempo que ela escolheu isso. Está disposta, diz, a sacrificar sua vida. O Afeganistão sangra há muito tempo. Faz-se urgente, diz ela, que se manifestem os esclarecidos e os inconformados, revoltados com a situação e que vão à luta, para livrarmo-nos dos senhores da guerra e do ópio, e constituir uma verdadeira democracia. Deputada eleita ao Parlamento de Cabul, está afastada do ofício por meios vergonhosos, ela não dorme nunca duas noites seguidas sob o mesmo teto, ameaçada pelos que denunciou por crimes, tráfico, cumplicidade, corrupção. Seu nome ressoa como uma provocação ao poder estabelecido, e uma esperança também para todos os democratas e para as mulheres afegãs. Malalaï Joya, “a mulher mais corajosa do Afeganistão”.
Ela palpita como um pássaro, a sobrancelha pregueada e o olhar ansioso. A eloqüência de sua voz é desenfreada, fica impaciente quando interrompida. Ela sempre teme perder tempo. Tanta coisa para contar, injustiças e desgraças para denunciar, clamar por ajuda dirigida aos democratas do mundo inteiro. então, um sonho? Seu semblante ilumina-se em uma fração de segundo e seu olhar perde-se distante. Sim, tantos sonhos…
“Eu Sonho que um Dia as Mulheres Tomem as Rédeas no Afeganistão”
Eu sonho que uma mulher um dia tome as rédeas do Afeganistão. Tenho recebido um mar de insultos: prostituta, louca, infiel, comunista… Um dilúvio de ameaças: estupro, seqüestro, assassinato… Uma bomba explodiu na multidão que me esperava em um dia de encontro. Meus escritórios têm sido espionados, tentaram emboscar minhas equipes. Tenho sobrevivido a quatro tentativas de morte. Minha determinação não vai ceder. Minha vida, é verdade, é complicada. Eu troco de teto toda noite. E de dia não ando mais por Cabul, a não ser de táxi escondida dentro de uma burqa. É difícil para minha família, para meu esposo. Mas eu tenho o apoio do povo. Indestrutível e ardente. As balas podem tirar minha vida, mas não aniquilarão minha voz, porque para sempre é a voz do Afeganistão. Eles podem cortar uma flor, mas não podem deter a primavera.
Meu nome, Malalaï Joya, não por acaso. Foi meu pai quem escolheu, o nome da mais velha de seus dez filhos, e nome de uma heroína da história afegã, Malalaï de Maiward, que se engajou em 1880 em uma batalha para combater os britânicos. Uma mulher virtuosa, disposta a sacrificar-se por seu povo e por suas idéias. Sinto-me sua discípula. Quanto ao sobrenome Joya, fui eu quem escolheu. Normalmente, uma mulher leva apenas o nome do seu pai após o do esposo. Mas eu decidi retomar o nome de um combatente pela liberdade, que foi executado após recusar as últimas condições que salvariam sua vida. Adoro este homem, e sou sua herdeira. Tenho 30 anos e não quero morrer, mas estou disposta, como ele, a arriscar minha vida.
Eu tinha quatro dias de vida quando um regime pró-soviético tomou o poder em Cabul, quando minha família foi ao Irã, oito anos quando nos juntamos a um campo de refugiados no Paquistão, 20 anos quando retornamos ao Afeganistão dos talibans e acabei sendo ativista. Era 1998. Depois, fui eleita ao Parlamento afegão para representar a província Farah. Depois fui excluída deste mesmo Parlamento por ter ousado criticar os senhores da guerra e da droga, que formavam 80% da Assembléia indigna. Quando então a comunidade internacional agirá neste caos que enterra meu país? Quando se compreenderá que os líderes não são nem mais nem menos que uma aliança de criminosos corruptos que desprezam as mulheres, que não sonham com nada mais que enriquecer-se?
Meu pai, estudante de Medicina, era democrata e engajou-se junto aos mujahedins sinceros para combater a ocupação soviética. Ele perdeu uma perna. Precisamos deixar o país. Fui alfabetizada em um campo de refugiados paquistanês voltado à vida de refugiados, e foi netste lugar também que me interessei pela vida dos refugiados, escutando seus relatos, seus choros, seus pesadelos, onde aprendi o que se passava no Afeganistão na época dos soviéticos e depois, na partida dos russos durante a guerra civil, quando os mujahedins praticaram o terror em Cabul. Estes eram os criminosos e bárbaros, sedentos de violência e de poder, e as recordações das mulheres do campo que haviam perdido seus esposos e filhos ou haviam sido torturadas e estupradas, cheias de pavor, eram terríveis.
Seguindo estudando apenas de manhã, rapidamente comecei a ensinar as meninhas do acampamento e suas mães a ler e escrever, inclusive à minha! Eu sabia que nossa saúde passava pela educação.
A organização OPAWC marcou-me. Esta ONG (Organização Não-Governamental) recrutou no acampamento jovens ativistas capazes de estimular no Afeganistão uma rede clandestina de escolas para as menininhas. Minha família por muito tempo hesitou, minha mãe tinha medo do taliban. Isto envolvia-nos em um retorno ao nosso país e que eu me engajasse ali – com um salário – em uma atividade perigosa. Mas eu estava convencida. Passamos pela fronteira todos juntos, eu vesti a burka e comecei a trabalhar em uma região de Farah, dentro da rede oculta de escolas de garotas. Havia medo, claro. Os talibans tinham espiões que seguiam os grupos de garotas comerciantes. Mudou-se o regulamento local. levava-se sempre o Corão para fingir ao inimigo que rezávamos.
O atentado do 11 de setembro provocou um verdadeiro choque. Ficamos sabendo através da rádio, interditada pelos talibans, mas através da BBC conectada ao mundo. Tanta discussão foi gerada! Naquela época também tememos a guerra iminente, mas havia a esperança de que os estrangeiros proporcionariam-nos um golpe para chegar ao poder. Foi a primeira vez na nossa história que estivemos dispostos a dar confiança a estas forças de ocupação!
Fui eleita à Loya Jirga, uma assembléia de 500 pessoas de todo o Afeganistão, convocada para examinar um projeto da Constituição em dezembro de 2003. Eu era a figura principal, e o que vi acontecendo ali, em Cabul?Todos os criminosos, bandidos, ladrões, torturadores que me haviam apontado como culpados desde minha juventude, e dentre os quais muitos entrincheiraram-se como ratos na época dos talibans! Eu não podia acreditar no que meus olhos víam! Eles estavam ali, atrevidos, arruinando todos os comitês, tentando arrancar o poder aproveitando-se da nova ordem democrática! Isto era insuportável! Eu deveria desmascará-los perante o mundo inteiro. Pedi dois minutos de palavra em nome da nova geração. Eu me dirigi, denunciando a presença destes traidores, decididamente anti-feministas, que arruinaram meu país e que mereciam ser levados à Justiça. Houve de repente um alarido horroroso. Eles ficaram todos de pé, punhos acima, uivando injúrias, exigindo minha expulsão e minhas desculpas. Eu preferiria morrer!
A multidão aguardava meu retorno à província. Gritavam-me, “Muito bem, obrigado!”. Ofereceram-me porções de terra e alianças de casamento. Diziam-me que continuasse lutando contra os criminosos. Pediam-me que apresentasse às próximas eleições. Eu não tinha o direito de ocultar-me.
Foi assim que, em novembro de 2005, lancei-me de novo ao Parlamento afegão. E foi também deste modo que, após minha denúncia da presença dos senhores da guerra e dos corruptos do ópio, que me jogaram às piores situações, invadindo meu micro e ameaçando estuprar, me matar… “Alegaremos seu suicídio!”. Eles, além disso, concluíram uma votação para me exculir. Havia manifestações de apoio, apelos internacionais, e não fizeram nada contra mim.
No momento em que me preparo para reintegrar-me ao Parlamento, onde estive legitimamente, tenho um sonho. Muitos, aliás. Sonho antes que as mulheres afegãs tomem atitudes e estabeleçam-se, levantem vôo, exijam todos os seus direitos. De tudo o que atormenta nosso país, elas são as principais vítimas: 87% sofrem violências domésticas; as violações – em grande parte impunes – são inumerávis. 80% das uniões são casamentos forçados, as filhas servem de moeda de troca: elas podem ser cedidas a anciãos, ofertadas em reparação por alguma dívida, trocadas às vezes por um cachorro. P suicídio – forca, estrangulamento, imolação – surge a muitas como a única opção para fugir da miséria delas. Se você soubesse o número de mulheres queimadas, desfiguradas, no hospital de Herat! A educação? Segundo a OXFAM, uma filha aos cinco anos vai à escola primária, e aos 20 à secundária! E isso não melhora! Nas regiões controladas pelos talibans, as menininhas são freqüentemente atacadas e raptadas no caminho da escola, e queimam-se os prédios das escolas. A saúde? Inexistente. A expectativa de vida de uma afegã não passa dos 44 anos; a cada 28 minutos morre uma mulher nos leitos…
Eu sonho que se desmascarem os criminosos corruptos que governam este país, e enriquecem-se com o ópio e com a ajuda ocidental, enquanto 70% da população vive com menos de 2 dólares por dia, 98% não têm acesso à eletricidade e afunda-se na insegurança. Sonho em ver esta corja do caráter de Hitler, Mussolini, Pinochet, Khomeini comperecidos à Justiça Internacional.
Sonho que se acabe esta mescla de Islã e política, e que o Afeganistão, livre da ocupação estrangeira, viva uma grande democracia laica. O Islã está em nosso coração e em nosso espírito. Ele não pode servir para se manipular a opinião.
Sonho que os cantos mais afastados do Afeganistão sejam dotados de uma escola. E de acesso à Internet.
Sonho, enfim, que uma mulher algum dia tome as rédeas do Afeganistão e prove ao mundo inteiro que, no momento que lhes é dada uma chance, as mulheres podem fazer um trabalho brilhante.