Carta Capital , spt. 02, 2013
Expulsa do Parlamento após discurso contra violações, ativista afegã conta como vive na clandestinidade dentro de seu próprio país
A ativista afegã Malalai Joya
Quando tinha 25 anos, Malalai Joya proferiu um discurso poderoso, no qual pedia que os senhores da guerra e os talebans fossem punidos pelas violações de direitos humanos que ocorrem sistematicamente no Afeganistão com o aval das autoridades internacionais. A fala no Parlamento deu início a uma jornada de medo e clandestinidade na vida da jovem ativista, que teve sua voz ao microfone imediatamente cortada e foi expulsa da Casa.
Desde então, foram dez anos marcados pela luta por direitos humanos, que foca a misoginia, o fundamentalismo, a ocupação do país por tropas estrangeiras na “guerra contra o povo afegão”. “Hoje, infelizmente, não temos sequer uma caricatura da democracia. E se o que os EUA e a Otan fazem no Afeganistão é sinônimo de democracia, então não queremos democracia”, disse em entrevista a CartaCapital durante a 9ª Marcha Mundial das Mulheres, da qual participou em São Paulo.
Antes de ser eleita para o Parlamento, que deixou em 2003, Malalai foi refugiada de guerra e professora para meninas no governo Taleban. Depois, manteve uma clínica para mulheres e um orfanato. Para ela, que foi considerada “a mulher mais corajosa do Afeganistão”, a militância é a única maneira de sobrevivência. “Todos que chegam ao poder apoiam a misoginia dos senhores da guerra e do Taleban. Não temos outra saída: ou enfrentamos ou ficamos em silêncio.”
Confira os principais trechos da entrevista:
artaCapital -Como vive hoje? Como é sua rotina?
Malalai Joya– Vivo clandestinamente no Afeganistão. Desde que comecei essa luta, autoridades perseguem meu ativismo, e, apesar de eu ter seguranças, não me sinto segura. No ano passado, atacaram meu escritório e dois meus seguranças foram feridos. Mas isso, felizmente, me dá mais força e determinação para continuar a luta contra a ocupação e também por justiça, paz e direitos humanos no meu país.
CC– Quantos dias costuma passar na mesma cidade? Tem de se mudar a cada semana? Como tem feito?
MJ– Depende muito da ajuda que cada casa pode oferecer. Por exemplo, se eu tenho um encontro com determinadas pessoas em algum lugar, é impossível ficar à noite na mesma casa. Então, vou para outra casa passar a noite. E, às vezes, a casa de um ativista que me apoia é segura para uma semana ou dez dias. Então depende da ajuda, da localização da casa que me acolhe e também do meu trabalho. Alguns dias tenho muitos encontros, um em uma casa de manhã, depois em outra casa e à noite estou em outra casa. Uso diferentes técnicas para não ser um alvo fácil.
CC– Há quanto tempo está nessa situação?
MJ– Faz muito tempo, desde que fiz meu discurso em 2003, no qual disse que os “senhores da guerra” deveriam ser punidos pelos inúmeros crimes e atrocidades cometidos e não estarem em comitês constitucionais ao mesmo tempo que ocupavam cargos governamentais. E é por isso que eles se colocam contra mim e me ameaçam com tentativas de assassinato nesses 11 anos, em que aprendi a falar sobre democracia e direitos humanos.
CC– Tem família, filhos, marido?
MJ–Tenho. Mas infelizmente não posso viver com a minha família, inclusive com meu marido. Meu filho tem apenas 9 meses e, como tenho de me mudar de um lugar para outro, não o levo porque ficou preocupada com sua vida e os riscos que está correndo. E não me preocupo apenas com meu filho, mas também com as pessoas que dão apoio, os meus seguranças. Infelizmente, não posso viver com minha família por questões de segurança no Afeganistão de hoje.
CC–Quantos seguranças a acompanham?
MJ–Depende. Em alguns momentos chego a estar com 12 seguranças, em outros com seis ou dois. Mas muitas vezes são mais de 12. Eu os conheço há muito tempo, confio neles. Eles acompanham meu ativismo há dez anos, eu confio neles.
CC-O que acha do título de “a mulher mais corajosa do Afeganistão” que lhe foi dado?
MJ– Eu não sou a única que arrisca a vida para enfrentar desafios. Mas conheço também mulheres e até mesmo homens dessa geração de guerra que fazem um corajoso ativismo. Na minha visão, não existe o mais corajoso, mas vários que, de maneiras diferentes,se solidarizam e dão mais esperança, determinação e força para continuar essa luta pelo direitos da mulher e os direitos humanos, contra a ocupação e por justiça.
CC–Qual foi o período mais difícil de sua militância?
MJ Faz dez anos que vivo a minha vida com medo. Não é medo do inimigo, mas medo de que alguma coisa aconteça com meus seguranças e as pessoas que me apoiam. Pessoalmente, eu me preocupo com a direção que o país vem tomando. Os afegãos, quando saem de suas casas e se deparam com a presença das tropas estrangeiras, não estão esperançosos ou seguros com militares estrangeiros e senhores da guerra, que agem como um governo dentro do governo julgando as pessoas, punindo-as, sequestrando-as.
Para as mulheres, especialmente, a situação é infernal: sequestros, estupros, ataques, violência doméstica, terror nas escolas e até mesmo mutilação de partes como orelha e nariz. Muitas das violências em violações de direitos humanos que acontecem contra as mulheres continuam.
Quando olho a minha vida, não acho que sou melhor que as outras, sou apenas uma delas. Há tantas mulheres corajosas, como a policial MalalaiKakar [chefe do departamento de crimes contra mulheres no departamento de Kandahar]. E há muitas outras lutando contra essa situação de desastre na qual se estão mulheres e crianças em todos esses anos sangrentos.
CC – A senhora costuma dizer que ‘não esperava estar viva’. Por quê?
MJ – Meu povo e eu enfrentamos três inimigos: senhores da guerra, Taleban (ambos de maioria misógina), e também os seus padrinhos, como Estados Unidos e a Otan que os apoiam, incluindo nações vizinhas como o Irã e o Paquistão. Os senhores da guerra financiam eles, e são contra mulheres, especialmente as ativistas.
Eles querem me eliminar, mas eu nunca farei silêncio e continuarei minha luta dentro do Afeganistão. No exterior, quando vou à conferências eu extirpo suas máscaras. Então se alguma coisa acontecer fisicamente comigo, todos esses inimigos ficarão felizes, não só eles. Por isso, devo tomar muito cuidado e é por isso que eles podem se tornar um obstáculo, não só para mim, mas para muitos ativistas democráticos do Afeganistão, cuja maioria agora vive clandestinamente. E, também por isso, a minha mensagem para pessoas justas e “amorosas” ao redor do mundo é a de fortalecer uma mente democrática. Os intelectuais que temos ativos no Afeganistão, homens e mulheres, são uma alternativa para um futuro promissor para o país.
Os EUA e a Otan fortalecem terroristas reacionários, como os senhores da guerra. E agora, depois de passarem esses dez anos dizendo estarem lutando contra o Al-Qaeda e o Taleban, soldados norte-americanos confessam, publicamente e sem qualquer constrangimento, que o Taleban não é seu inimigo. E é verdade. O que venho dizendo e compreendo é que o Taleban, os senhores da guerra e seus padrinhos, como os EUA, não são inimigos do Ocidente, e sim do povo afegão.
CC– Até que ponto o patriarcalismo é um grande entrave à igualdade de direitos?
MJ– O povo afegão enfrenta desafios, diferentes tipos de inimigos e problemas essenciais, como falta de comida. Mulheres e crianças são as mais afetadas. Todos que chegam ao poder apoiam a misoginia dos senhores da guerra e do Taleban.
A maioria das pessoas não são educadas. Acredito que exista uma grande parte da população feminina que não saiba nem mesmo ler ou escrever, que precisa ser educada e atuar na formação da identidade da mulher para ver como isso modela suas vidas.
Eu era muito jovem quando me envolvi com política e queria ser uma política honesta. As pessoas que vinham ao meu gabinete, pediam meus conselhos, que tipo de escola deveriam mandar suas filhas. São provas de que se a democracia chegar ao poder e tiver chances de ser executada a sociedade irá melhorar.
No entanto, os senhores da guerra fazem com que o Afeganistão seja mal visto pelos países estrangeiros. E todos que chegam ao poder protagonizam o mesmo problema: não deixam o país melhorar, não permitem que as mulheres cheguem ao poder.
O Afeganistão está melhorando devagar. Nesses últimos 12 anos o país teve sua democracia interrompida. E hoje, infelizmente, não temos sequer uma caricatura da democracia. E se o que os EUA e a Otan fazem no Afeganistão é sinônimo de democracia, então não queremos democracia.
CC– O capitalismo, na sua opinião, fomenta a desigualdade de gênero?
MJ– Sim. É possível ver o papel que o capitalismo e o imperialismo têm nisso e não apenas no Afeganistão, mas em vários países do mundo. Mas no meu país você vê, dia após dia, aumentar o abismo entre ricos e pobres, a desigualdade, as mulheres sem seus direitos. E é isso que países imperialistas como os EUA e os da Otan fazem nessa guerra criminosa contra o Afeganistão. A cada dia, eles empurram o Afeganistão para sua era mais escura. Agora mesmo eles se comprometem com talebans misóginos que estão chegando ao poder. E essa situação está se tornando, cada vez mais, um desastre para as mulheres afegãs.
Acredito que essa “paz” que dizem termos é ainda mais perigosa do que o aquilo que costumávamos chamar de guerra. Por quê? Porque essa paz faz com que os inimigos do povo afegão fiquem ainda mais unidos. Quanto mais unidos estiverem os senhores da guerra e os talebans, mais ameaçado estará o espírito democrático no Afeganistão.
CC – O que ainda precisamos conquistar em termos de gênero?
MJ– No Afeganistão, não se trata apenas de gênero, de homens e mulheres. É preciso que as tropas deixem o meu país. Nós não temos independência. Não podemos falar em democracia, direitos humanos, a não ser como piada.
Como eu disse, mulheres e crianças são as que mais sofrem nessa situação catastrófica. A condição em que vivem as mulheres foi apenas uma ótima desculpa para os EUA e a Otan ocuparem o Afeganistão.
E, de forma geral, homens e mulheres são, cada vez mais, sujeitos a altos índices de desemprego, pobreza, corrupção, violência doméstica e muitos outros tipos de problemas. Você pode ver as consequências depois de 12 anos de ocupação das tropas estrangeiras: eles trouxeram o Afeganistão para o centro do terror. E acredito que esse terror é ainda mais perigoso do que Al-Qaeda para a vida das pessoas.
CC– O que é pior em relação à desigualdade de gênero: pobreza ou violência às quais as mulheres estão submetidas?
MJ– No fim das contas, pobreza e violência doméstica são a mesma coisa. A violência doméstica não é apenas violência doméstica, mas também tem na raiz desse problema o regime patriarcal e misógino que vigora no país.
Não temos outra saída. Ou enfrentamos ou ficamos em silêncio. Dia após dia, mais pessoas se levantam contra os senhores da guerra do Taleban, contra a ocupação. A guerra no Afeganistão, infelizmente, não é apenas uma guerra militar, mas uma guerra de propaganda também.
CC– É impossível, portanto, ter fundamentalismo religioso com liberdade e igualdade de gênero?
MJ– Sim, é impossível. O fundamentalismo é extremamente misógino e é contra todas as mulheres. É impossível falar em direitos humanos quando se fala disso. As mulheres do Afeganistão não são mais as mesmas de 30 anos atrás. Nessas décadas de guerra em que perdemos tudo, ganhamos ao menos uma coisa boa: a consciência política, que tem crescido nos últimos anos. E a minha mensagem, nesse sentido, tem sido: falar em direitos humanos para o meu povo é educá-lo. A educação e a chave para empoderamento do povo afegão, assim como o fim da ocupação é para nos dar emancipação.
CC– O que mudou desde 2001 no país? Como era viver no Afeganistão nas décadas anteriores?
MJ– Durante os anos 60 e 70, as mulheres tinham seus direitos ilimitados. Há fotos delas com roupas modernas, sem “lenços”, andando nas ruas. Elas desempenhavam seus papéis e dirigiam suas vidas. No passado, homens e mulheres tiveram direitos ilimitados. Mas a guerra, infelizmente, fez das mulheres suas primeiras vítimas. Desde a Guerra Fria, a violência contra elas é muito forte.
Hoje o Afeganistão parece um corpo doente, e todos querem uma parte dele, em vez de nos oferecer uma ajuda honesta. Não há dúvida de que nós precisamos de ajuda, mas isso não significa que queremos uma ocupação. E nós temos orgulho de nossa história, nunca aceitaríamos uma ocupação.
Se um governo democrático estivesse no poder, se os países estrangeiros, especialmente os EUA, não interferissem nos nossos assuntos internos, o Afeganistão melhoraria muito. Mas empurram o Afeganistão em direção ao retrocesso. Poderiam chamar essa “guerra ao terror” no Afeganistão, que dizem ser feita em nome da democracia e dos direitos humanos, de guerra ao povo afegão encampada pelos EUA e a Otan.
CC – Como enxerga o futuro do Afeganistão?
MJ– Enquanto as tropas estrangeiras continuarem, o sofrimento será prolongado. Não há outra maneira. A história mostra que a apenas a própria nação é capaz de se libertar. E as pessoas estão conseguindo entender isso a cada dia que passa. Muitos ainda mal têm o que comer, sofrem de muitos tipos de problemas, mas acredito que, com o passar do tempo, conseguirão se levantar.